Talvez o momento em que eu tenha percebido quão ruim são todas as traduções (todas) tenha sido quando por algum motivo me propus a fazer uma nova tradução de um capítulo d’O Pequeno Príncipe’, escrito pelo aviador Antoine de Saint-Exupéry e publicado em 1943. O tradutor da primeira tradução ao português de ‘Le Petit Prince’, de 1954, foi o monge Dom Marcos Barbosa. A famosa frase que todos conhecemos “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.” é originalmente “Tu deviens responsable pour toujours de ce que tu as apprivoisé.”.
Observemos as partes: pour toujours não é eternamente, senão para sempre, e está depois de responsable, não antes. Eternamente seria éternellement. Entretanto, em extrema literalidade pour toujours –contração de tous les jours– seria traduzido como por todos os dias, porém como não há contração disso em português e para manter as três sílabas originais, é preferível manter para sempre. Mas o principal desvio da tradução está no termo apprivoisé. Etimologicamente o verbo apprivoiser deriva do latim privare, que surge do termo privus, que quer dizer privado ou próprio. Assim, apprivoiser denota tanto a capacidade de tornar algo privado –privé– ou propriedade –propriété– que antes não o era, assim como a capacidade de aprisionar –emprisonné–, ou seja, privar algo de algum grau de liberdade.
Agora: nunca o verbo apprivoiser seria o original de cativar. Primeiro porque existe uma tradução literal para cativar, que é captiver. Segundo porque o contexto da história é de um diálogo entre um menino e uma raposa, e isso leva à possibilidade específica de um animal ser domado ou domesticado. Enquanto os verbos domar e domesticar se aplicam exclusivamente a animais digamos irracionais, o verbo cativar se aplica indiferentemente a homens e animais, embora esteja mais vinculado a uma ação humana. Sendo assim, se eu leio cativar, a impressão e sensação que essa palavra me causará será muito distinta da impressão e sensação que me causaria ler domar ou domesticar. Porém, domar e domesticar possuem traduções literais ao francês, que são dompter e domestiquer. Com isso, quero provar o seguinte: se o Antonie de Sant-Exupéry quisesse falar de cativar, ele haveria usado o verbo captiver; se ele quisesse ter falado de domar, haveria escrito dompter; e se quisesse falar de domesticar, haveria usado domestiquer.
Até aqui temos o seguinte, do modo mais literal possível: ‘Tu devéns (do verbo devir) responsável por todos os dias (para sempre) daquilo que...’. Essa tradução demonstra que a própria tradução que elaborei anteriormente para o capítulo XXI é ruim e equivocada. Por que termo então deveria ser traduzido apprivoisé? Essa é uma pergunta chave de qualquer tradução. Todos os problemas fundamentais de tradução estão envolvidos nela.
1. Literalidade
Por que ser literal? A literalidade em tradução não é só uma questão de significado exato, mas antes disso uma questão de música. Quero dizer com isso: o leitor precisa continuar escutando a voz do autor original. O fato de eu afirmar que todas as traduções são ruins quer dizer que em poucos momentos de um texto traduzido o leitor pode realmente estar na presença da voz do autor original. Ou seja, a voz que o leitor escuta ao ler ‘O Pequeno Príncipe’ não é de Saint-Exupéry, mas de Dom Marcos Barbosa. O que o leitor lê em todas as traduções não é um escrito do autor original, mas um escrito do tradutor. N’O Pequeno Príncipe’ você está lendo Dom Marcos Barbosa.
Todo ser humano (todo) tem seu timbre, seu tom, seu volume e sua cadência de voz. A tradução deve mantê-los ao máximo. Isso é um esforço angustiante. Um esforço que pede por eliminar, apagar, ocultar e esconder qualquer vestígio da presença do tradutor. Mantê-los é a rigor impossível; seria como ressuscitar o autor original e fazê-lo falar.
A literalidade, sendo uma questão musical, e portanto artística, implica que a música que se escuta através do texto traduzido deva coincidir, no limite do possível, com a música produzida pelo original. As palavras traduzidas, antes de serem a tradução semântica do termo, são as formalmente mais semelhantes às originais. A literalidade está envolvida num problema etimológico; trata-se de lógica e etimologia, não de significado de dicionário.
2. Legibilidade
A literalidade implica numa aproximação formal ao texto original. Traduz-se o que o original é, não o que ele significa; não se esclarece ou se ameniza ou se contextualiza o texto. Traduz-se a aparência e a superfície do original. Traduz-se tal como ele se apresenta. A tradução deve ser, em última instância, um fac-símile. Essa aproximação formal da literalidade visa como principal aspecto do resultado –o texto traduzido– a legibilidade. Ou seja: o texto resultante da ação de traduzir deve ser legível, antes de entendível. A legibilidade implica que uma oração seja sintaticamente bem construída, ainda que a ordem das palavras eventualmente seja incomum e a pontuação pareça estranha. O resultado da tradução deve permitir primordialmente que você possa ler o texto. Entendê-lo é um passo posterior –inclusive no caso dos escritos originais–. Um escrito não entendível não implica necessariamente uma má tradução. Um escrito ilegível provavelmente sim.
3. Fidelidade
A tradução fiel, aquela que mantem ao máximo a voz e as palavras do autor original, resulta na especulação de um sotaque específico daquele autor. A leitura de um escrito traduzido é a audição do autor original falando em outra língua, isto é, com seu sotaque individual e particular. Saint-Exupéry jamais falaria português como um português, assim como um brasileiro nunca poderia falar um português tal como o falado em Portugal. Lina Bo Bardi nunca falou português do Brasil sem seu particular sotaque italiano. Suponho algo similar para Warchavchik.
A tarefa do tradutor é então ser fiel não necessariamente ao autor, mas ao que dele existe: suas palavras, sua ordem nas frases, e sua pontuação, que determina sua cadência. Somente através delas pode-se chegar a ser fiel ao autor. Não se interpreta um texto no momento de traduzi-lo. Isso faz parte do âmbito da leitura, não do da tradução. Um escrito bem traduzido, não implica num escrito de fácil leitura. Um estrangeiro em raros casos consegue ocultar seu sotaque, e frequentemente fala de modo estranho, porque a construção mental das suas sentenças é diferente, as palavras que usaria seriam outras, a posição delas nas frases também. Quando escutamos um estrangeiro, frequentemente reordenamos instintivamente suas palavras para a forma que cotidianamente empregamos para nos comunicar. Esse modo particular da fala do estrangeiro é o resultado formal da tradução fiel. Ela é um problema de forma antes que de significado.
4. Musicalidade
Há uma música por trás de todo escrito. Todo escrito produz uma música na mente do leitor. Este é o som que deve ser mantido na tradução. É preciso ser um excelente intérprete para escutá-lo bem. É preciso ter olhos atentos e uma audição aguçada. A fidelidade à pontuação é uma condição irrevogável para a manutenção da musicalidade do original. Frequentemente abordada como um problema de norma, a pontuação tem a capacidade de mudar profundamente o modo de ler um texto, transformando-o, por exemplo, numa leitura pausada e calma quando antes era acelerada e angustiante.
É uma questão de normativa do português do Brasil que a pontuação seja antes uma questão de delimitação de orações, adjuntos e complementos, que uma questão de respiração. Em línguas como o inglês e, em certa medida, o castelhano, a pontuação é utilizada mais como graus de pausa da respiração, que como normas de sintaxe. Portanto, no caso dessas línguas, há mais flexibilidade e liberdade no uso principalmente de vírgulas e ponto-e-vírgulas, que frequentemente são muito diferentes de como seria em português.
Em música, e mais claramente num coral, sabemos que só é fisiologicamente possível alcançar certas notas por apenas certo período de tempo, depois do qual se faz naturalmente obrigatória uma inspiração, para logo poder tornar a expirar uma nova nota. O mesmo ocorre durante a leitura de qualquer texto. Se for um texto de alta qualidade literária, ele produzirá uma música particular, determinada visivelmente por sua pontuação, assim como, obviamente, das palavras utilizadas. O escrito te guiará através da sua pontuação. É preciso ler o texto –também– como uma partitura musical. Entretanto, deve-se deixar claro que não faz parte do âmbito da tradução julgar a qualidade de um texto. Ao contrário, seu âmbito é meramente prático: a ação de traduzir. Sendo assim, no curto período de tempo de uma dada tradução, o escrito original, sendo ou não de qualidade, será abordado como sendo de máxima qualidade literária.
Em outro momento, havia lido uma tradução ao espanhol do livro ‘Real Presences’ do escritor George Steiner. Quando finalmente pude ler o escrito original em inglês, vi quão absurda era a tradução e quão ridículas eram as alterações em relação ao original, a começar pela primeira frase –a primeira frase do livro–. “We speak still of ‘sunrise’ and ‘sunset’. We do so as if the Copernican model of the solar system had not replaced, ineradicably, the Ptolemaic.” foi traduzido ao espanhol como “Seguimos hablando todavía de la «salida» y la «puesta» del sol. Y lo hacemos como si el modelo ptolomeico del sistema solar no hubiese sido sustituido, de forma irreversible, por el copernicano.”. Não há no original ‘Seguimos falando ainda’, mas simplesmente ‘Falamos ainda’. Esse é um erro corriqueiro de interpretação indevida, ou seja, procurando adaptar o original a um modo comum de se expressar na língua da tradução. Não há “E o fazemos”, mas simplesmente “Fazemo-lo”. Esse é um erro similar ao anterior: não se acrescenta –com exceções– palavras inexistentes no original. E o mais absurdo: o tradutor inverte sem nenhum motivo além da sua própria falta de habilidade, a relação de ordem na frase entre o ‘modelo copernicano’, que aparece antes, e o ‘ptolomaico’, que aparece ao final da frase.
A frase d’O Pequeno Príncipe’, que discuti anteriormente, e as duas primeiras frases de ‘Presenças Reais’ sintetizam quase todos os problemas envolvidos em tradução.
5. Sentido
A questão do sentido é somente em última instância um problema do tradutor e portanto da tradução. O tradutor está atado aos aspectos formais e sintáticos do texto, e somente secundariamente aos semânticos. O sentido, vinculado à ação de interpretar, é um problema que pertence ao leitor; ele é o agente interpretativo e aquele que completa o sentido da mensagem. O tradutor está atado à transmissão e ao meio, não ao sentido. Um escrito originalmente confuso será muito provavelmente mais confuso na sua versão traduzida. Um escrito que utiliza palavras rebuscadas e raras terá uma tradução rebuscadíssima, que dependerá da habilidade e conhecimento do tradutor. Nenhum tradutor é capaz de traduzir qualquer tipo de escrito de uma determinada língua.
Talvez o único sentido da tradução seja uma questão de acessibilidade a algo antes inacessível. Este é de fato o objetivo das publicações de artigos originais em português no ArchDaily Brasil. Porém esta acessibilidade é –considerando que todas as traduções são ruins– aos assuntos tratados num dado escrito; não é uma acessibilidade à obra literária em si. Ou seja, a tradução torna acessível somente determinadas ideias, argumentos, assuntos ou temas, e nisto consiste o valor da tradução. A acessibilidade à obra só existe através do original. Com isso quero dizer: a tradução é apenas e não mais que uma porta que deve conduzir ao original; leia-a como fonte de informação e conhecimento, não como obra ou referência; leia-a como um jornal, não como um livro. Agora, o fato sobre as nossas traduções originais é que elas são e buscam ser muito menos ruins que todas as demais.
Qual seria a tradução ideal de ‘apprivoisé’?
A opção da tradução corrente, cativado, é ruim semanticamente, formalmente e musicalmente, o que quer dizer que ela é uma má tradução. As opções ‘domado’ e ‘domesticado’ são ruins formalmente e musicalmente, e em certo grau semanticamente. A opção ‘privado’ é menos ruim formalmente e musicalmente, porém possui várias denotações que o tornam estranho enquanto tradução. O sinônimo de privado, desprovido, é menos ruim ainda formalmente e musicalmente, pois já possui as três sílabas do termo principal somadas ao prefixo des-, que equivaleria numericamente a a-, porém apresentando o mesmo problema semântico do anterior. A opção ‘aprisionado’ é boa musicalmente e formalmente, talvez uma entre as melhores, mas poderia produzir conotações negativas à frase original. A opção decorrente de propriedade, apropriado, não é tão boa musicalmente e formalmente quanto aprisionado, porém semanticamente é melhor que a anterior e não apresenta conotações tão negativas quanto ela.
«Tu devéns responsável para sempre daquilo que tu hás apropriado.» —Igor Fracalossi